Todo ano, aparece alguém para apontar um novo Bob Marley, um substituto a altura -- o escolhido, aquele em cuja cabeça será recolocada a coroa do rei do reggae. Mas nunca dá certo. E já faz 26 anos que ele morreu. O câncer primeiro se manifestou na perna, só que na forma de uma contusão. Dava para ir levando e durante seus últimos anos ele conviveu com aquilo, jogando bola, fazendo shows, se protegendo como dava. Pouca gente sabia, mas a situação era muito séria. Marley morreu em 1981, depois de uma frustrada tentativa de recuperação numa clínica na Alemanha. Foi ali, já sem as tranças, magro e marcado como um parafuso, tremendo de frio naquelas montanhas que nem de longe lembravam as da Jamaica, que ele entoou seu último refrão:
“Me levem para casa, me levem para casa...”
Teve e tem muitos caras bons no reggae por aí e também um monte de oportunidades para sagrar um herdeiro desse trono místico, mas nunca dá certo. De 1981 para cá, a música da Jamaica tomou rumos fabulosos. Passou por incontáveis revoluções criativas, misturou-se a outros gêneros musicais, ensinou e aprendeu com melodias e batucadas de outros países. Grandes nomes do reggae, como Winston Rodney (o “Burning Spear”), Dennis Brown e Jimmy Cliff, lançaram discos históricos, rodaram o mundo inúmeras vezes, sofisticaram seus estilos. Mas não ganharam a coroa.
Outros superstars dispararam nesses quase 20 anos. Sly & Robbie e o pessoal do Black Uhuru, por exemplo, simplesmente mudaram o reggae na forma e na aparência no meio dos anos 80 – mais ou menos como fizeram Bob Marley e os Wailers na virada dos anos 70. Foi um choque, eles são venerados até hoje, mas viraram reis de outras coisas – não do reggae. Ouviu-se muito Barrington Levy, Garnett Silk, Alpha Blondy, Everton Blender, Tony Rebel, Maxi Priest, Shabba Ranks e até o último filho jamaicano a virar astro nas paradas dos Estados Unidos, esse foi Shaggy... Mas nada. Porque mãe é mãe, Pelé é Pelé e Bob Marley é Bob Marley.
O FILHO DO CAPITÃOTodo mundo adora histórias de grandes viradas. No mundo da música, então,
isso é fundamental. John Lennon parece ter mais valor quando se revela que morou com a tia num sobradinho de nada, lá em Londres. Joe Cocker, que se drogou até o fundo do poço, depois deu a volta por cima e acabou recebido com mais carinho do que nunca. Rod Stewart foi coveiro, coitado. Bem, a biografia de Bob Marley é um festival de acontecimentos assim.
Sua epopéia começou com 2,9 kg na província de St. Ann, uma vilinha, uma freguesia no meio do mato. Cedella Booker -- que na época só cantava em casa e hoje também faz até algum sucesso gravando discos -- engravidara de um capitão inglês, um certo Norval Sinclair Marley. Na Jamaica, especialmente no interior, é muito comum o homem ter filhos com várias mulheres diferentes. Muitas famílias ainda se constituem por lá dessa maneira, com a mãe e a avó em torno das crianças. Mas o capitão era um forasteiro e, provavelmente, não estava atrás de compromisso, nem de um jeito, nem de outro. Dizem que, depois de Bob ter nascido, o capitão Marley chegou a escrever algumas cartas de Kingston, a capital. E que, mais tarde, teria insistido para que o menino fosse para lá, morar com parentes e se preparar melhor para a vida. Mas o certo mesmo é que o capitão sumiu do mapa, a ponto de alimentar uma infinidade de lendas a seu respeito e sobre encontros secretos com o filho famoso.
Robert Nesta Marley – o nome de Bob nas escrituras – era um magricela esperto e, de acordo com os relatos de sua mãe, já de criança tinha uma atitude muito estranha. Passava por momentos de dispersão, mantinha olhares distantes e chegava a dizer que ouvia vozes vindo do nada. Contam que, ainda moleque, intrigava às senhoras da vila lendo mãos, como um cigano (malandro que é malandro...). Quem o criou de verdade nos dez primeiros anos de vida foi o pai de Cedella, Omeriah Malcolm. O velho era um dos mais respeitados cidadãos do lugar, tinha um bom conhecimento sobre as forças da natureza (era meio bruxo ou curandeiro) e dominava as palavras de sabedoria. Coisas que Bob levou ao pé da letra durante toda a vida.
A PRIMEIRA VEZQuando Bob Marley chegou em Kingston, em 1955, sua mãe estava casada com um tal de Toddy Livingston e morava em Trench Town. Todo mundo hoje sabe, ou tem uma vaga idéia, de que lugar é esse, o imenso bairro de lata, o favelão de onde emanam as mais tensas energias da cidade. A vid
a ali nunca foi fácil. Por qualquer coisa passava-se a faca e muitos dos amigos de Marley, de um dia para o outro, acabavam envolvidos com a delinqüência. O clima por lá continua assim até hoje – talvez um pouco pior.
Bob Marley preferiu o caminho da música. Além das canções folclóricas que a mãe e o avô cantarolavam em Nine Miles, suas influências, agora, incluíam os sucessos do rhythm’n’blues americano, que chegavam até o Caribe em disquinhos e a bordo das ondas do rádio. Fast Domino, The Moonglows e Curtis Mayfield eram alguns dos grandes nomes da época.
A primeira vez de Bob Marley nos estúdios aconteceu em 1962, quando Jimmy Cliff (outro ilustre desconhecido na ocasião) o apresentou ao cara que tinha grana para pagar a fita, o aluguel do estúdio e os músicos. Era um chinês chamado Leslie Kong (tem essa: a Jamaica tem grandes comunidades chinesas e indianas), que por 20 libras, uma miséria, entrou para a história. Marley gravou duas de suas composições inéditas: “Judge Not” e “Do you Still Love me?”. Hoje são pérolas dos colecionadores, aparecem em coletâneas e super caixas, mas naquela época foram apenas mais alguns fracassos entre dezenas, centenas de outros cometidos por jovens iguais a ele, dia após dia.
O companheiro número 1 de Marley nessa época era um rapaz sangue bom chamado Neville O’Riley Livingston -- um dos filhos do padrasto. Com ele, Bob Marley compunha e cantava todo dia nos fundos de quintal – os “Tenement Yards”, áreas comunitárias dos cortiços de Trench Town. Logo, um galalau da vizinhança juntou-se à brincadeira -- era Winston Hubert McIntosh. Estava formada a célula dos Wailers: Bob Marley, Bunny “Wailer” Livingston e Peter Tosh.
UM ATRÁS DO OUTROVale dizer que o reggae ainda não existia e que a Jamaica então balançav
a ao ritmo do ska, que é bem mais rápido, com metais tocando forte. O refrão dizia “cool down your temper”, uma mensagem do tipo relaxe-e-fique-frio endereçada aos “rudeboys”, a nata da delinqüência na Jamaica dos anos 60.
Ameaçados de um lado pela polícia, de outro pela malandragem, o engajamento dos três nos temas do dia-a-dia era uma escolha natural, comum a toda aquela geração. Na Jamaica, até hoje a música tem força de jornal. Subiu a gasolina? Em uma semana tem dezenas de músicas sobre o assunto tocando no rádio e nos sound systems (o que os maranhenses chamam de radiola). Há um político metido num escândalo? É a mesma coisa, um compacto atrás do outro.
Mas o que o reggae adicionaria a essa receita, em meados de 1968, logo depois da consistente onda do rock steady (o elo de ligação com o ska), era a fé rastafari, uma das religiões mais loucas da paróquia. Resumindo a ópera, os rastas se identificaram com a história dos judeus bíblicos e passaram a acreditar que a África era a terra prometida, Deus era Hailé Selassié (ex-imperador da Etiópia, que morreu em 1975) e o sacramento era a ganja (Cannabis indica, maconha muito mais forte do que a consumida no Brasil). E, de um jeito ou de outro, em maior ou menor grau, eles continuam acreditando em tudo isso.
Sob o efeito da erva, perseguidos pela policia e com uma aparência que em nada combinava com a imagem pretendida pela burguesia jamaicana, os rastas espalharam sua crença nos guetos de Kingston e misturaram seus tambores às guitarras, baixos e baterias da galera nos estúdios. Deu no que deu.
JUSTIÇA, PAZ E LIBERDADEEm 1966, ainda antes da eclosão do reggae, Bob Marley casou com Rita Anderson (que hoje é Rita Marley, a mulher oficial do homem). E no dia seguinte, se mandou para Delaware, na Filadélfia (EUA) para encontrar a mãe (nem Freud explica) e tentar a sorte nas linhas de montagem das fábricas de automóveis, mais precisamente na Chrysler. Mas a temporada na América serviu também para Bob afinar seus sentimentos, colocar seu ideal num tribunal particular e, enfim, decidir-se a abraçar a música definitivamente. Dizem que foi aí, em Delaware, que ele conheceu o disco Revolver, dos Beatles. E ficou apaixonado.
No ano seguinte, ele estava de volta à Jamaica. Reencontrou os amigos, Bunny e Peter, e juntos passaram a freqüentar os melhores estúdios, atrás de oportunidades. O lance decisivo, porém só viria em 1969, quando com a ajuda do músico e produtor Lee “Scratch” Perry, ganharam uma dupla infernal de instrumentistas – os irmãos Carlton (bateria) e Aston “Familyman” Barret (baixo). Com essa formação, os agora The Wailers definiriam com extremo talento as bases do reggae tal qual o conhecemos.
Numa seqüência bem-sucedida de lançamentos, os Wailers conquistaram algum respeito no mercado jamaicano e preparam a cama para o que estava por vir. Absorvidos pela ideologia rasta, eles agoras tinham a carapinha espetada e falavam em justiça, paz e liberdade, cantavam as perseguições policiais, o paraíso e o inferno dos guetos, o destino certo e glorioso dos que tinham fé e a esperança de alcançar o colo acolhedor, mas distante, da mãe África. Quando a gravadora Island Records, de um branco maluco chamado Cris Blackwell, ofereceu a oportunidade de lançá-los internacionalmente, a música dos Wailers estava madura, quase incandescente.
Contiunua...